Qual o perfil da pecuária vencedora da próxima década? – Maurício Palma Nogueira

Maurício Palma Nogueira

A pecuária brasileira está numa trajetória certa, objetiva. Mesmo que os cenários de curto prazo sejam um pouco incertos e muitas vezes confusos, o longo prazo reserva um futuro certo e animador para a pecuária de corte brasileira.

E contrariando a famosa frase do economista John Maynard Keynes (1883-1946), não estaremos todos mortos no longo prazo. Esse longo prazo tem horizonte para 10, 20 anos.

No entanto, apesar das boas perspectivas, a cadeia produtiva da pecuária de corte não pode relaxar, apoiada na crença que as benesses venham de mão beijada. Esse futuro precisa ser construído, trabalhado. Indústrias de insumos e serviços, fazendas, frigoríficos e agroindústrias que usam os demais produtos do abate de bovinos precisam se alinhar e se preparar para a pecuária dos próximos anos. Não se trata de filosofia ou afirmações motivacionais para iniciar o ano com uma mensagem otimista. Essa realidade de boas perspectivas para a pecuária brasileira da década 2021 a 2030 não será para todos.

Produtores e indústria precisam ainda trilhar com sucesso o período que separa o momento atual dos anos iniciais da próxima década. Embora o ano de 2014 tenha sido muito favorável, é fundamental considerar que a pecuária passa atualmente por mudanças estruturais, que impactarão definitivamente os resultados dos próximos anos.

Em outras palavras, o bom resultado do momento não garante o passe para a próxima década. E é agora que serão adotadas as decisões que possibilitarão ou não o nível de competitividade de cada empresa. Não há espaço para erros.

Para entender um pouco as mudanças, vale lançar mão dos dados que traduzem com maior clareza essa trajetória da pecuária: a relação de troca entre um boi gordo e um bezerro.

A história da relação de troca é consequência da construção da pecuária brasileira e precisa ser analisada de acordo com a realidade dos últimos anos. Em uma análise mais profunda, é possível contextualizar a tendência para os próximos anos.

O tema foi explorado recentemente em outro artigo, intitulado “Pecuária, uma revolução está em Campo”, de onde extraí o seguinte trecho resumindo o processo de expansão para o interior do Brasil:

“Diante da cultura europeia, responsável pela colonização de nosso país, o ambiente tropical do interior do Brasil é extremamente hostil. Embora flora e fauna sejam suficientemente ricos, expandir a atividade econômica para o interior não era coisa simples, apesar de necessário.

Poucas eram as alternativas disponíveis para avançar em áreas de abertura, com ausência total ou quase total de infraestrutura, estradas e recursos humanos capacitados. Dentre as poucas opções, a pecuária de corte era a mais atraente, principalmente a atividade de cria.

A principal vantagem da pecuária, é que a produção podia caminhar pelas estradas precárias através de comitivas que dominavam o cenário destas regiões de abertura. O processo histórico de mudança com a chegada da infraestrutura, inclusive, faz parte do acervo cultural do interior brasileiro. Quantas músicas sertanejas, por exemplo, exploram o tempo das comitivas e a inevitável chegada do transporte rodoviário?

Em praticamente todas as regiões abertas a partir de 1950, a pecuária chegou primeiro, carregando o ônus de atividade desflorestadora. 

Esse é um passivo da história do avanço do povo brasileiro para o interior. Um passivo quase que exclusivo da produção de carne bovina. É por isso que normalmente os profissionais da pecuária dizem que se a pecuária foi o machado, quem segurou o cabo foi a sociedade.

Nos anos de forte expansão agrícola, a demanda por rebanho para ocupar áreas recém abertas superava a demanda da pecuária. Como a maior parte das fazendas de abertura se destinava à atividade de cria, este desequilíbrio entre oferta e demanda foi acentuado no mercado dos bezerros ou animais jovens. Havia mais bezerros ofertados do que a necessidade de compra para engorda.

Para comprovar o fato, lançamos mão dos preços históricos de bezerros e bois gordos, segundo o acompanhamento do Instituto de Economia Agrícola de São Paulo, num primeiro momento, e do Centro de Estudos e Pesquisa em Pecuária Avançada, nos anos mais recentes.

Até os anos 1990, o valor da arroba do bezerro era cerca de 21% inferior ao valor da arroba do boi gordo. Trata-se de um claro desequilíbrio entre oferta e demanda, haja vista que é muito mais caro produzir um quilo de bezerro do que um quilo de boi gordo.

A partir dos anos 1990, com a redução do avanço rumo às fronteiras e com a estabilização da moeda brasileira, o mercado começou a se equilibrar e os preços vieram se ajustando.

Atualmente, na média, são os preços dos bezerros, por arroba, que permanecem mais de 20% acima das cotações do boi gordo.

Na prática, o pecuarista percebe essa mudança pela evolução nas relações de troca entre o boi gordo e bezerro. Cada vez mais, compra-se menores quantidades de bezerros com a venda de um boi gordo.

Essa relação que na média histórica gira em 3,14 bezerros comprados com a venda de um boi gordo, caiu para os atuais 2,2 bezerros comprados com um boi gordo. O próprio boi que terminava com cerca de 16,5@ a 15 anos atrás, hoje é enviado ao abate por volta das 18@, na média nacional. E mesmo abatendo o animal com um peso maior a relação de troca vem se reduzindo para o comprador de bezerros.”

Evolução da relação de troca entre um boi gordo e um bezerro de aproximadamente 6,0 a 6,5@

 
 

Com base no raciocínio desenvolvido, podemos tecer algumas afirmações.

– A pecuária nunca dependeu de desmatamento e do avanço sobre as fronteiras; foi o avanço sobre as fronteiras que dependeu da pecuária. A prova disso é a sobra de bezerros durante quase cinco décadas.

– A produção de bezerros era subproduto da operação imobiliária e ocupação de fronteiras, por isso sua oferta não foi equilibrada de acordo com a demanda da pecuária e produção de carne (a arroba do bezerro sofreu deságio até meados da década de 1990).  Mesmo os movimentos típicos de ciclo pecuário foram insuficientes para levar o preço do bezerro a patamares coerente com a demanda de boi gordo para abate.

– Considerando atividade de ciclo longo, e o excesso de estoque existente de animais de diversas categorias, é de se esperar que o mercado leve alguns anos para se equilibrar.

– A realidade da pecuária começou a mudar a partir de meados da década de 1990, quando a hiperinflação foi vencida pelo plano Real. E junto com a inflação, também foi controlado o avanço sobre áreas de fronteira. A produção e a produtividade passaram a ser mais interessantes economicamente do que a imobilização de patrimônio e a posse de estoques.

O impacto de todas as mudanças foi traduzido no gradual aumento do pacote tecnológico nas fazendas. A recria e engorda foram agregando produtividade, aumentando escala e, consequentemente, demandando cada vez mais bezerros. Como a recria e engorda avançou mais do que a cria, o resultado foi a rápida valorização da arroba do bezerro diante da arroba do boi gordo. Na cria, o aumento da velocidade na intensificação dos sistemas produtivos começou cerca de 10 anos depois.

O resultado prático dessa mudança tecnológica pode ser contabilizado pelo efeito “poupa terra”, conceito que foi inicialmente analisado pelo engenheiro agrônomo Geraldo Martha Júnior, da Embrapa. Seguindo o mesmo raciocínio do pesquisador, a Agroconsult estimou que com a mesma produtividade de 1990, seriam necessários 419 milhões de hectares para produzir o mesmo volume de carne estimado atualmente. Ou seja, se o processo de tecnificação não tivesse ocorrido, o Brasil teria que ter desmatado outros 251 milhões de hectares para manter a atual produção de carne. Ou, analisando de outra forma, a produção seria significativamente menor e a carne bovina seria bem menos acessível ao consumidor.

Essa tendência de tecnificação vai continuar nos próximos anos. Haverá cada vez menos espaço para a pecuária de baixa tecnologia; o que já vem acontecendo na atividade de recria e engorda.

Quanto mais caro for o bezerro, o pecuarista que o comprar terá que ficar o menor tempo possível com ele. Ou seja, precisará planejar a nutrição para termina-lo mais cedo.O comportamento da recria e engorda é reflexo da relação de troca mais apertada para o comprador. O raciocínio é simples.

Além de terminar mais cedo, o produtor precisará aproveitar ao máximo o potencial da carcaça. Portanto, sua estratégia nutricional tem que abreviar o tempo de terminação e maximizar o peso da carcaça: mais tecnologia ainda.

Com o preço do bezerro mais alto, e a maior participação de componentes diretos dos custos de produção (nutrição, por exemplo), as margens por arroba ou por animal tendem a ser menores ao longo dos anos, o que reforça a necessidade de aumento da escala. Com isso, onde um pecuarista colocava um bezerro, ele se esforçará para colocar mais de um, e assim por diante.

Observe que a antecipação e a tendência de aumento na escala por área tendem a imprimir uma pressão ainda maior de demanda no mercado de bezerros. Essa pressão, evidentemente, tende a aumentar ainda mais os preços criando um círculo virtuoso de tecnificação na recria e engorda, por necessidade, e na cria, por estímulo. Os produtores de ciclo completo não poderão ficar alienados ao processo, pois o comportamento impactará também o mercado de bois e vacas, o que afeta diretamente o resultado do ciclo completo.

Os produtores que não se prepararem para o processo ficarão na mesma situação que hoje é a realidade para a recria e engorda de produtividade até 6@/ha/ano: prejuízo.

É por essa razão que a média de produtividade da recria engorda é atualmente em torno de 7,55@/ha/ano, quase duas vezes a mais do que a média da produtividade da cria e do ciclo completo. Quem não atinge a média, opera no negativo e tende a sair do mercado.

Daqui dez anos, a exigência será ainda maior.

Portanto, resumidamente, pode-se dizer que a pecuária vencedora da próxima década deverá atender requisitos básicos de gestão e tecnologia.

O pecuarista precisará melhorar a atenção que destina aos pastos; precisará tratá-lo como lavoura, tanto nos tratos culturais como na consciência da produtividade por pasto, estoque de capim e safra da fazenda. Só assim o pecuarista planejará a lotação, os ganhos e necessidade de confinamento.  Os efeitos de uma seca prolongada, ou de um ataque de pragas ou invasoras, precisarão ser administrados antecipadamente, evitando os prejuízos. A necessidade de correção e fertilidade do solo e dos pastos nem será mais discutida pelos produtores de sucesso. O que será discutido serão as estratégias e níveis de fertilização.

A estratégia nutricional para fornecimento de minerais, sal proteinado ou energético, concentrados, semi confinamento, confinamento, etc. será definida pela expectativa de faturamento e pelo inventário de capim disponível ao gado. O plano nutricional será anual, com revisões mensais e ajustes semanais.

Sanidade, reprodução, qualidade do gado (Genética e cruzamentos) serão decididos objetivando o máximo de ganho, alinhado com as demandas do mercado, especialmente no caso dos cruzamentos. O pecuarista de sucesso já tem consciência de que a maximização do desempenho zootécnico (fertilidade, natalidade, desmama, ganho de peso, etc.) são essenciais para os bons resultados. Nada mais prejudicial do que uma propriedade com alta lotação e baixo índice zootécnico.

Para aumentar o faturamento, o estoque do rebanho precisa girar rápido, o que se traduz em aumento do desfrute. E o aumento do desfrute nada mais é do que a soma dos bons resultados em cada um dos indicadores zootécnicos desde a concepção de uma vaca até o abate do animal que for gerado por essa vaca.

A estrutura das fazendas, assim como a qualidade administrativa da propriedade, deverá ser adequada às demandas tecnológicas que serão fundamentais lá adiante.

Em relação à administração ou gestão, é essencial frisar que não há chances de uma empresa intensificar a produção e aumentar o pacote tecnológico se não melhorar, concomitantemente, a gestão de todos os processos, técnicos, pessoais e financeiros. Gestão e tecnologia precisam evoluir de mãos dadas.

Enfim, resumidamente, essa é a pecuária vencedora da próxima década. Aos pecuaristas, o desafio atual é se preparar para chegar pronto a essa próxima década. E escolher com sabedoria as melhores estratégias tecnológicas para atingir os objetivos.

* Artigo publicado na Revista BeefWolrd, edição de dezembro/14

Maurício Palma Nogueira,

Engenheiro agrônomo, Sócio e Coordenador da Divisão Pecuária da Agroconsult.  Fone: 48 3209 1650

e-mail: mauricionogueira@agroconsult.com.br
www.agroconsult.com.brFonte da NotíciaBeefWolrd

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