Não dá para aceitar que uma nova metodologia revise significativamente as informações censitárias, obtidas por um instituto como o IBGE, sem que nenhum questionamento seja feito por parte da comunidade científica.
A pecuária brasileira é o centro do debate sobre sustentabilidade. O histórico da ocupação territorial, a extensão da área ainda hoje ocupada por pastagens e a dificuldade de dados estatísticos consolidados formam a receita perfeita para que narrativas sejam construídas a partir de diversos critérios metodológicos, conforme a preferência de quem avalia. Há muita confusão e estudos conduzidos sem a participação de especialistas conhecedores da área, o que limita a capacidade de compreensão da dinâmica do que ocorre no campo.
Há poucos anos, uma iniciativa reunindo pesquisadores de órgãos públicos e da iniciativa privada foi criada, com a participação da sociedade civil e a condução de frequentes debates envolvendo pesquisadores que não participavam do projeto, consultorias especializadas e representantes de institutos de pesquisa e órgãos do governo, interessados nas informações. A ideia inovadora e promissora trouxe resultados satisfatórios, pela adoção de uma metodologia que faz todo sentido.
O raciocínio é simples. Os pesquisadores responsáveis pelas pastagens fazem a plotagem de toda a área identificada em um mapa. Em seguida, os pesquisadores de outras áreas inserem, no mesmo mapa, os respectivos resultados de seus estudos: grãos, cana, eucalipto, recomposição florestal, frutas etc. Quando uma dessas áreas sobrepõe a área de pastagem, prevalece a outra ocupação, permitindo identificar a ocupação da pecuária pela diferença. O conjunto de mapas para cada atividade é chamado de coleção e o projeto, muito bem planejado, chama-se MapBiomas.
Além das pastagens representarem a ocupação de maior dificuldade de identificação, é também a atividade de maior extensão. As pastagens não integradas com outras atividades ocupam 60% a mais do que a soma de todas as outras atividades agropecuárias, incluindo as integradas.
Outra razão que justifica a metodologia adotada é a tendência de que áreas de pastagens sejam repassadas para atividades agrícolas, enquanto os desmatamentos acabam se tornando novas áreas de pastos.
Apesar de não ser tema deste texto, é bom lembrar que o desmatamento ilegal não é consequência da atividade pecuária. A causa do desmatamento ilegal é, como sua própria definição, a operação e condução de atividades ilegais. O resultado dessas operações acaba se transformando em pastagens, justamente por se tratar de uma atividade de difícil controle, extremamente atrativa para aqueles que buscam esconder patrimônio fruto de enriquecimento ilícito. A primeira vítima dessas operações ilegais é a própria pecuária organizada – tanto frigoríficos como produtores – e, por consequência, toda a indústria de insumos e serviços por trás da produção.
Voltando ao raciocínio, pela metodologia proposta inicialmente, o monitoramento das pastagens poderia focar os esforços em melhorar a base de dados e acompanhar o avanço das áreas nos chamados arcos de desmatamento.
Por outro lado, o acompanhamento de outras atividades por imagem de satélite, inclusive a análise estatística dos pastos monitorados, possibilitaria melhorar o conhecimento da curva de degradação e da mudança de uso da terra nessas áreas. A qualidade dos dados seria inquestionável e embasaria ações muito mais objetivas e direcionadas para políticas públicas e estratégias de fomento a serem adotadas pela iniciativa privada, interessada no aumento da produtividade.
Se assim tivessem procedido, em 2020 tal metodologia estaria aprimorada e já reuniria seis anos de série histórica, obtidos pela análise aprofundada e detalhada, anualmente.
No entanto, quando os resultados pareciam cada vez mais fazer sentido em comparação com diversos outros indicadores e fontes de dados, os coordenadores do projeto resolveram desenvolver uma série histórica a partir de metodologias que ainda não ficaram claras aos usuários das informações.
Quando questionados, invariavelmente os pesquisadores respondem – quando respondem – que tal metodologia ainda está em análise e aprimoramento e que, em breve, será publicada. Mesmo assim, antes que a metodologia seja publicada nos moldes da produção científica, os resultados são apresentados como se fossem consolidados. E esses mesmos dados embasam diversos outros estudos que são conduzidos pela combinação de recursos doados e recursos públicos.
Além de consumir parte dos já escassos recursos disponíveis para pesquisas, o embasamento de pesquisas em dados incorretos pode acarretar uma sequência de estudos e conclusões equivocadas, criando um efeito cascata de desinformações apresentadas como resultado de ciência. Essa é a crítica.
E a base dessa crítica está no acompanhamento dos dados históricos, publicados no próprio site do MapBiomas. Só em 2019, entre as publicações das versões 3.1 e 4.1, a área estimada para 2018 mudou 40 milhões de hectares depois de duas revisões. Na série histórica, a diferença entre um dado e outro é ainda maior, chegando a quase 50 milhões de hectares para os mesmos anos.
É fato que, na produção científica, essas diferenças podem ocorrer. A partir de novos conhecimentos ou revisões metodológicas, os dados podem se alterar entre um critério e outro.
No entanto, se a metodologia ainda não está consolidada, os dados não poderiam ser apresentados como referência em relação à área de pastagem. E muito menos deveriam embasar outros estudos conduzidos a partir de tais informações. A ciência precisa ser produzida a partir de dados comprovados, e não a partir de teses não confirmadas.
É também fundamental que haja transparência e validação dessas metodologias propostas para revisão. Assim como toda a produção científica, essa validação deve seguir protocolos, envolvendo a participação e avaliação de especialistas em pastagens, produção pecuária, processo de degradação, dados já conhecidos e indicadores de produtividade. Temos pesquisadores com conhecimento de sobra nas universidades e na Embrapa. A maioria nem sequer é informada sobre a metodologia que tem sido adotada por essa nova forma de ciência que parece não gostar de ser contrariada.
Seguindo os passos previstos, com validação das premissas, metodologia e transparência, não há problema na revisão das informações. Só não é aceitável que se passe o carro nas frentes dos bois.
Mas há ainda uma outra grande questão na série histórica do MapBiomas. O maior problema não está na diferença entre as suas próprias versões, mas sim na comparação destes dados históricos com os resultados dos censos agropecuários, conduzidos e divulgados pelo IBGE ao longo dos anos.
A primeira série histórica, publicada pelos coordenadores, chegou a 84 milhões de hectares a menos do que os resultados do censo de 1985, e 55 milhões de hectares a menos do que o censo de 1995. Na última versão, ainda disponível no site, essas diferenças recuaram para 45 e 16,4 milhões de hectares a menos, respectivamente.
A metodologia do censo agropecuário é clara em relação à obtenção dos dados. Não há estimativas; os dados são coletados e interpretados. Sendo assim, se houver algum erro no censo, espera-se que tal erro ocorra para baixo e não para cima.
Foram essas as críticas feitas para as edições de 2006 e 2017 do censo do IBGE. A partir das bases de rebanho, e comparando os dados com outra fonte pesquisada pelo próprio IBGE (Pesquisa Pecuária Municipal – PPM), percebe-se que os dados censitários são significativamente menores do que os da PPM. Portanto, são dados do próprio IBGE que permitem questionar o censo. O IBGE é detentor do maior orçamento relacionado a esse tipo de pesquisa e é responsável pelos dados oficiais sobre o que ocorre no país.
É temerário quando uma nova base de dados, conduzida sem transparência metodológica e sem passar pelo rigoroso protocolo da produção científica, coloca em xeque a credibilidade da principal base de informações estatísticas do país.
A revisão dos dados sugere um erro de até 45% sobre os que foram divulgados no censo de 35 anos atrás. E essa conclusão demanda uma responsabilidade ainda maior por parte dos pesquisadores. Como os dados obtidos pelo MapBiomas são menores do que os obtidos pelo IBGE a partir dos censos, essa diferença não seria explicada por erros metodológicos, mas sim pela deliberada manipulação de dados. Trata-se, portanto, de uma especulação muito séria que não pode passar em branco.
Aceitar tal correção depende, fundamentalmente, do rigor processual que a boa ciência exige. São dados que não podem simplesmente ser aceitos, usados, principalmente porque há uma fonte oficial, consolidada, que os coloca à disposição.
É importante frisar que os resultados dos censos de 2006 e 2017 só foram questionados pela diferença entre as bases publicadas pela própria instituição. E há explicação técnica que justifique tais diferenças. No entanto, até o censo de 1995, essa incoerência entre ambas as metodologias não existia.
No caso da Athenagro, que usa as bases de informações para construção de cenários, estimativas e projeções, o MapBiomas deixou de ser usado a partir das últimas versões.
Ainda assim, a série histórica nunca foi usada, pois sempre optamos por usar dados mais confiáveis, cruzando informações originadas a partir do IBGE, PRODES/INPE e Conab. A checagem dos dados ainda é feita por duas outras fontes, que são o Rally da Pecuária, por onde qualificamos o grau de degradação e perda da área de pastagens, e pelo Terraclass/INPE, que confirmava a tendência de degradação e revegetação estimada a partir dos dados do Rally. O Terraclass parou de ser divulgado em 2014.
É possível desenvolver uma nova base de dados confiáveis, histórica, obtida por imagem de satélite. Nesse caso, no entanto, é preciso que, para cada ano, todas as imagens sejam analisadas, comparando a área de pasto com as diversas outras culturas. Em outras palavras, é preciso gerar uma coleção de mapas para cada ano ou para cada intervalo de períodos. E tais coleções não podem ser obtidas a partir dos atuais pontos de pastagens conhecidos. Nesse caso, perde-se as áreas que deixaram de ser pastagens. O comportamento dos pastos é muito dinâmico para uma baixa frequência de avaliação visual por imagens de satélite.
Além de envolver muito trabalho e muito orçamento, tal metodologia ainda esbarraria na padronização da quantidade e qualidade das imagens por satélite disponíveis ao longo dos anos.
Em uma das explicações apresentadas para a construção da série histórica, durante um seminário, o apresentador detalhou que a série teria sido construída a partir de indicadores conhecidos por municípios, o que permitiu modelar a evolução histórica das áreas de pastagens.
Ora, essa é a metodologia que sempre foi adotada pelas consultorias e pesquisadores especializados em pecuária. E sempre se usou um pacote de conhecimento muito maior do que a simples comparação entre rebanho e área de pastagens. São diversas as variáveis que interferem, dentre as quais é possível citar a composição estrutural do rebanho por categorias (vacas, bezerros, novilhas, boi etc.), a idade e o peso médio do rebanho em estoque, o tempo entre a desmama e o abate, o peso médio de abate, o mercado de nutrição animal, mercado de insumos para pastagens, mercado de sêmen etc. E as metodologias sempre partem de três bases conhecidas, todas do IBGE: Censo Pecuário, Pesquisa Pecuária Municipal e Pesquisa Pecuária Trimestral.
É fundamental que os pesquisadores envolvidos se movimentem no sentido de explicar as metodologias e premissas de forma contundente, sujeitas a revisões e questionamento da comunidade científica. É assim que ocorre com qualquer produção que pretenda ser classificada como ciência.
E antes dessa confirmação, seria recomendável que os dados relacionados à série histórica fossem retirados do ar, sob pena de alimentar diversas outras pesquisas que serão produzidas a partir de dados equivocados. Trata-se de desperdício de recursos públicos que podem gerar um problema ainda maior, ao orientar políticas públicas erradas, com impactos imprevisíveis na economia, na sociedade e na proteção ambiental.
Não dá para aceitar que uma nova metodologia revise significativamente as informações censitárias, obtidas por um instituto como o IBGE, sem que nenhum questionamento seja feito por parte da comunidade científica.
Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo e diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária
Fonte da Notícia
Athenagro