Maurício Palma Nogueira
A pecuária brasileira vem adotando práticas sustentáveis ininterruptamente. Se produzíssemos o volume atual de carne bovina com a mesma produtividade da década de 1990, teríamos que ter desmatado 250 milhões de hectares.
O artigo de Washington Novaes na seção “Opinião” do Estadão de 27 de fevereiro de 2015, intitulado “Nos caminhos do boi, os rastros a apagar*”, traz à tona alguns dados em relação à produção pecuária e os supostos impactos ambientais que precisam de reflexão mais aprofundada e técnica.
O articulista tem razão em reforçar as conclusões da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura) sobre a necessidade de rever o modelo de produção para atender a demanda crescente por alimentos nas próximas décadas. No entanto, classificar o modelo da pecuária brasileira como insustentável é um ponto a ser questionado.
Embora os dados das emissões de metano (CH4) e gás carbônico (CO2) pelos bovinos estejam corretos, o autor não considera a quantidade de carbono sequestrada pelas pastagens. Incapaz de consumir toda a forragem disponível da área, o bovino acaba ingerindo apenas as folhas, especialmente as mais novas e mais tenras. Mesmo com bons manejos, os bovinos a pasto retiram apenas 30% a 40% da matéria seca de toda a área. O restante volta ao solo como material morto, reiniciando o processo de ciclagem de nutrientes. Serve também como cobertura vegetal, mantendo a umidade e a temperatura do solo.
À parte aérea que sobra do pastejo, soma-se todo o volume de raízes que, nas gramíneas, atingem a mesma massa de matéria seca que a parte aérea. Grosso modo, o que cresce acima do solo, cresce também abaixo. As raízes não são standard nas touceiras de pastagens. A cada ciclo de produção, todo volume precisa ser refeito aumentando cada vez mais a massa vegetal incorporada ao solo e, com isso, a capacidade de armazenamento de carbono. Em pastagens bem manejadas, tais ciclos são de 25 a 30 dias na época das chuvas e em torno de 60 a 90 dias na época da seca.
Quanto contabilizamos essa reciclagem da forragem não consumida (parte aérea e raízes), conclui-se que o sistema produtivo compensa todas as emissões dos bovinos, mesmo considerando a equivalência da molécula de metano em 20 vezes a molécula do gás carbônico, conforme lembrado no referido artigo.
No entanto, o articulista não menciona outros estudos apontando que na atmosfera, sob o efeito de outros gases, essa equivalência da molécula de metano cairia para apenas 6 vezes em relação à molécula de gás carbônico. Nessa nova referência, o balanço será ainda mais positivo em favor da pecuária.
Do ponto de vista ambiental, o modelo de produção brasileiro é mais eficiente do que o modelo norte-americano e europeu. No Brasil, a terminação em confinamento é usada estrategicamente para corrigir a diferença entre a produção das pastagens nos diferentes períodos do ano. Entre 70% e 80% da produção das pastagens ocorrem no período chuvoso. A essa diferença dá-se o nome de “curva de estacionalidade”. Sempre que aumentar a produtividade no período de chuvas, haverá a necessidade de aumentar a quantidade de animais que terminam em confinamento.
Aproveitar as forragens tropicais é uma das grandes vantagens dos ruminantes, animais cuja fisiologia permite a digestão de partes dos vegetais que não são disponíveis aos monogástricos.
Mesmo que o desempenho animal do tipo de bovino e da alimentação usada na pecuária brasileira seja inferior ao europeu e norte americano, é essencial não cairmos na armadilha de querer copiar modelos da pecuária de clima temperado para a de clima tropical. Por muitos anos, esse foi o grande erro da agricultura. Erro que começou a ser corrigido na década de 1970, com o advento do plantio direto; o país adaptou o sistema de produção e é hoje o único detentor de tecnologia para a produção nos trópicos. O mesmo raciocínio vale para a pecuária.
Considerando apenas a área de pastagens, de acordo com dados da FAO, a pecuária brasileira é 30% mais produtiva que a norte-americana. Se incluirmos toda a área de milho e soja para os confinamentos, concluiremos que a eficiência da pecuária brasileira é ainda maior em relação aos EUA. O mesmo ocorre na comparação com a Europa.
Do ponto de vista nutricional, é fato que as pastagens são mais pobres em qualidade, o que exige a suplementação do rebanho. Mas não deixa de ser contraditório que no mesmo artigo que se defende o modelo de confinamento, se critique a necessidade de suplementar o rebanho a pasto.
Dependendo da categoria animal, e da estratégia de suplementação, a pasto recomenda-se entre 60 gramas a 450 gramas por dia de suplementos mineralizados por cabeça. Em sistemas confinados, o fornecimento de concentrados chega a 10 quilos por cabeça por dia.
A complexidade da nutrição de bovinos e os diversos fatores envolvidos que poderiam levar à ocorrência de patologias ou distúrbios citados pelo articulista, como cara inchada, botulismo e outras, exige muito mais do que um simples parágrafo. A forma como o assunto foi apresentado no texto pode levar o leigo às conclusões erradas. A mineralização no Brasil está longe do ideal e mesmo assim as patologias ou distúrbios citados pelo articulista não incidem como se parece sugerir no texto. O maior resultado da má mineralização é operar com uma produtividade aquém do que seria possível. O mais prejudicado é o próprio pecuarista.
Por fim, soa muito estranho a afirmação “forte e recente avanço da pecuária sobre grande parte da Amazônia”. Há anos a pecuária vem reduzindo as suas áreas com incorporação de tecnologia. Essas áreas estão sendo repassadas para a produção de grãos, cana, eucalipto ou sendo revegetadas.
Os dados obtidos por imagem de satélite pelo projeto Terraclass, do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), apontam que em 10 anos, apenas no Bioma Amazônia, foram recompostos 16,5 milhões de hectares de florestas. E outros 6,3 milhões estão em estágio avançado de recomposição. E grande parte dos dados de desmatamentos são os produtores reabrindo áreas que já foram pastagens em anos anteriores.
Concluindo, a pecuária brasileira vem adotando práticas sustentáveis ininterruptamente. Se produzíssemos o volume atual de carne bovina com a mesma produtividade da década de 1990, teríamos que ter desmatado outros 250 milhões de hectares.
Caso parcela da sociedade decida alterar o seu hábito de consumo, orientada por desinformações preconceituosas sugerindo a associação entre a pecuária e problemas ambientais, o único efeito prático será o atraso no processo de aporte tecnológico, o aumento dos custos nas empresas relacionadas e o impacto direto na vida das cerca de 6,75 milhões de pessoas que vivem, direta e indiretamente, da bovinocultura.
Maurício Palma Nogueira,
engenheiro agrônomo, sócio e coordenador de pecuária na Agroconsult
* Artigo veiculado no Estadão: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,nos-caminhos-do-boi-os-rastros-a-apagar-imp-,1640903