Exportações de carne bovina estão mesmo contaminadas pelo desmatamento?

Na última semana, a divulgação de um estudo publicado por pesquisadores brasileiros na revista Science ganhou amplo espaço na mídia. O artigo intitulado “The rotten apples of Brazil’s agribusiness”, que, em tradução livre, significa “As maçãs podres do agronegócio brasileiro” foi liderado pelo professor Raoni Rajão, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), junto com 11 pesquisadores de universidades brasileiras e estrangeiras.

Basicamente, o estudo comparou os limites das propriedades através do Cadastro Ambiental Rural com diversos mapas de desmatamento, identificando e qualificando cada uma das propriedades amostradas. Na análise de produção de carne, foram usados os dados de GTA (Guia de Transporte de Animais) e informações geradas por organizações focadas em rastrear a origem das commodities. O estudo é embasado e os resultados confirmam o posicionamento do agronegócio em relação ao desmatamento: uma minoria responde por praticamente toda a ilegalidade.

Ainda assim, entre a produção científica e a comunicação com a sociedade, as conclusões foram totalmente invertidas, tal qual a velha brincadeira do telefone sem fio. Jornalistas e veículos de imprensa nacionais e internacionais influentes comunicaram o resultado do estudo com as seguintes manchetes e linha fina: “Science: cerca de um quinto da soja e carne brasileiras vêm de desmatamento”, “Até um quinto das exportações de soja e carne da Amazônia e do Cerrado para UE têm rastros de desmatamento ilegal, diz estudo”, “20% das exportações brasileiras estão vinculadas ao desmatamento ilegal”, “Science: 60% das exportações brasileiras de carne bovina para a UE estão diretamente ligadas ao desmatamento”.

Com razão, pesquisadores especialistas no agronegócio elogiaram o conteúdo do estudo e criticaram a forma que o resultado foi comunicado. É o caso do Marcos Fava Neves. Opinou com base na ciência, na coerência entre o resultado científico e a conclusão que será comunicada. Seria o correto, mas infelizmente estamos em um mundo que compra e vende notícias ruins. As boas notícias apodrecem no estoque. Destacar uma minoria de maçãs podres vende mais do que celebrar o alto índice de conformidade em um país que ainda sofre problemas sérios relacionados à ilegalidade, informalidade e corrupção.

O estudo em si é digno de elogio, pelo esforço, pelo trabalho envolvido e pela importância do tema. E o desafio foi ainda maior por se tratar de uma atividade com pouquíssimas informações disponíveis. O resultado obtido pelos pesquisadores soma conhecimento embasado à atividade e enriquece o portfólio de informações para que as inconformidades e ilegalidades sejam combatidas.

No entanto, é fundamental ressaltar que a metodologia é insuficiente para quantificar a contaminação das exportações de carne. As informações permitem quantificar a quantidade de bovinos negociados provenientes de áreas com desmatamento que pode ou não ter sido legalizado, visto que parte das conclusões ainda dependem da validação dos dados do CAR (Cadastro Ambiental Rural). Os autores são cuidadosos em reforçar sempre que há a “potencial” contaminação, mas ainda assim navegam no risco de chegar a “conclusões heroicas”, conforme foi adotado pela imprensa sensacionalista.

Uma questão a ser considerada refere-se às estratégias de adequação à legislação, seja na própria unidade produtiva ou através de aquisição de outras áreas para se adequar ao Código Florestal.

A consultoria MB Agro lembra que “propriedades tidas como irregulares pelo CAR podem ter aderido

ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) que concede 20 anos para adequação. Fica evidente que, ao se utilizar o CAR como fonte de referência para avaliar se a propriedade está em conformidade ambiental, se pressupõe que todas essas áreas não estão passando por um processo de regularização. No entendimento da consultoria, o estudo desqualifica a produção e exportação de propriedades inteiras quando apenas parte delas “podem” estar em ilegalidade. Pode sim haver áreas que estejam produzindo nessa categoria, mas também pode haver áreas em conformidade legal e desqualificar a produção total da propriedade, como é feito no estudo, não faz sentido. Isso gera números superestimados.” (Valor Econômico, 22/07/2020)

Os dados foram obtidos em 2017, o que reforça a ressalva feita pela MB Agro. Além de não ter sido considerada a possibilidade de planos de adequação até 2017, há ainda outros dois anos e meio de mudanças que podem ter ocorrido na condução das propriedades ou mesmo no compliance dos exportadores.

Na questão da relação entre os imóveis e a quantidade exportada, as contaminações sugeridas pelo estudo são ainda mais temerárias. De acordo com o artigo, para calcular a porcentagem da carne bovina contaminada com potencial desmatamento ilegal, exportada para a comunidade Europeia, os autores dividiram o total de cabeças abatidas em propriedades que haviam se envolvido, em algum nível, com desmatamento após 2008.

Os pesquisadores ponderaram o abate nesse cenário com as exportações por município. Este resultado foi multiplicado pelo total de carne exportado para a Europa, segundo os dados de ONG internacional focada em rastrear a origem das commodities do mundo.

Mesmo tendo em mãos os dados da GTA (Guia de Transporte Animal), o critério para analisar a quantidade exportada cruzou estimativas de outros estudos, sendo que, pelos próprios dados disponíveis teria sido possível separar os frigoríficos exportadores dos demais, recalculando o potencial de contaminação.

Na tabela a seguir estão apresentados os totais de abate e de produção de carne pelos frigoríficos com diferentes sistemas de fiscalização. Apenas os frigoríficos com fiscalização federal (SIF) conseguem obter autorização para exportar. Essa diferença em ambos os estados precisaria ser considerada no estudo.

Outro dado que precisaria ser levado em consideração é a diferença entre o peso médio da carcaça dos animais abatidos sob fiscalização federal e outras fiscalizações. A produção de carne não se distribui proporcionalmente ao número de cabeças abatidas. Quando se usa tal critério, penaliza-se a produção mais tecnificada e premia-se a de baixa tecnologia, seja nas fazendas, seja nos frigoríficos.

Essa diferença nos pesos entre os sistemas de fiscalização é consequência da qualidade dos fornecedores dos frigoríficos. Com peso médio superior, conclui-se que as unidades com SIF recebam animais originados de sistemas mais tecnificados, seja pelo peso médio de terminação, seja pela participação de fêmeas ou animais de baixa qualidade final no abate. É de se esperar que sistemas com maior aporte de tecnologia tendam a possuir uma incidência de inconformidade legal menor do que os sistemas mais tradicionais.

Portanto, são três passos que o estudo poderia ter considerado ampliando a confiabilidade do dado gerado: direcionamento aos frigoríficos potencialmente exportadores, produção de carne ao invés de usar o número de cabeças e identificação das plantas exportadoras por destino.

Observe que as três sugestões contemplam informações que podem ser obtidas através das GTAs e dados do próprio IBGE (pesquisa trimestral), com as quais seria possível usar informações mais exatas.

Apesar dos pesquisadores terem acesso às guias de GTA detalhadas, por produtores, trata-se de informações que não estão disponíveis abertamente. O fornecimento dos dados da GTA é negado com base na Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, o que nos impede de refazer todos os passos do estudo, separando as informações conforme nossa sugestão.

Sendo assim, para realizar as comparações considerando apenas as informações disponíveis, consideraremos a premissa sabidamente equivocada de que o índice de contaminação de propriedades que desmataram seja igualmente distribuído entre todos os frigoríficos e abatedouros com diferentes sistemas de fiscalização.

Sabe-se que essa premissa é equivocada pelo fato de que todas as pressões de ONGs, compradores e Ministério Público Federal se concentram apenas nas unidades exportadoras dos frigoríficos com fiscalização federal.

Apenas o ajuste do peso médio da carcaça e do tipo de fiscalização já reduziria o total de carne contaminada por desmatamento em 17% do que foi considerado no estudo.

E de toda a produção fiscalizada com abate federal, somadas entre os anos de 2016 e 2017, apenas 20,7% foram exportadas. Deste total, apenas 16% do Mato Grosso e Pará foram destinadas à Europa.

Desconsiderando todo o monitoramento exigido por clientes, ministério público e sociedade civil e assumindo que os exportadores fossem tão negligentes a ponto de não operar com um mínimo de cuidado a mais do que toda a estrutura de abate de ambos os estados, o potencial máximo de contaminação nas exportações da região para a Europa seria de 41,6% no total embarcado pelo Mato Grosso e Pará, juntos.

Como a região representou, em 2016 e 2017, apenas 22% das exportações para a comunidade europeia, o potencial máximo de contaminação por desmatamento da carne enviada aos europeus, considerando todas as premissas e negligência nas análises de dados disponíveis, seria de apenas 9,7 %.

A questão não para por aí. Ao associar o agronegócio como responsável pelas “maçãs podres”, é preciso ainda levar em consideração a metodologia que os levou a concluir o total de contaminação por desmatamento. De acordo com o artigo, foi considerado como fornecedor direto aquele produtor que desmata e vende ao frigorífico, sendo ele mesmo o responsável pela ilegalidade. Apenas 12% do total analisado pelo estudo estava nessa condição, lembrando ainda das ressalvas apresentadas pela MB Agro.

Ainda de acordo com o estudo, se uma fazenda não desmatar, mas comprar gado de uma fazenda de desmatamento, essa contaminação foi considerada como indireto de nível 1.  Se um fornecedor direto compra de um fornecedor de desmatamento livre, mas que, por sua vez, compra de outro fornecedor com desmatamento potencialmente ilegal, o fornecedor direto está classificado como indireto de nível 2. E esse procedimento foi repetido até o nível 10, até não encontrar mais fornecedores indiretos para cada direto.

No gráfico a seguir, estão resumidos os graus de contaminação de acordo com o estudo.

Se forem refeitos novamente todos os cálculos considerando as exportações, de acordo com os critérios adotados no estudo, os produtores e frigoríficos, juntos, só poderiam ser responsáveis por 20% das inconformidades. As demais, embora existentes e igualmente maléficas, são responsabilidade da sociedade, do Estado, e não do agronegócio que opera na legalidade. Esse raciocínio foi abordado no artigo “Desmatamento: alvo errado, resultado inesperado”, de 15 de julho, disponível no site do Rally da Pecuária.

Nesse caso, no máximo, o potencial de contaminação da carne exportada pelo Pará e Mato Grosso juntos seria de 8,3% do total enviado à Comunidade Europeia. Em relação à contaminação das exportações brasileiras totais para a Europa, o máximo seria 0,77% do que é exportado.

Desconsiderando as ressalvas e aceitando as estimativas que poderiam ter sido substituídas por métricas, o máximo de responsabilização que o agro poderia receber pelas suas “maçãs podres” seria pouco menos de 1% dos embarques de carne para a Comunidade Europeia. Vale todo o barulho e desgaste para a imagem brasileira?

Por fim, é importante esclarecer que o objetivo não é desqualificar – e muito menos negar – a ciência. Pelo contrário, os resultados gerados pelo estudo são bem vindos e fornecerão bases para soluções implementadas no campo. Esse é o objetivo da pesquisa.

As críticas que cabem ao artigo são basicamente três. A primeira está relacionada à comunicação midiática dos resultados. Essa não é responsabilidade dos autores; da mesma forma que um produtor ou um frigorífico não deveriam ser responsabilizados por ilegalidades praticadas por terceiros, embora devam se esforçar para que seus fornecedores estejam em conformidade com a lei.

A segunda crítica é até que ponto o estudo chegou com fatos incontestáveis e a partir de que ponto pecou pelas premissas e estimativas. A identificação das áreas e propriedades que se relacionaram em algum momento com desmatamento sempre se apoiou em dados incontestáveis. Os resultados poderiam ter parado por aí, gerando informações extremamente qualificadas para que os agentes responsáveis fiscalizassem e auditassem o nível e as ações de adequação dos produtores às exigências. Essa é basicamente a natureza da ressalva feita pela MB Agro.

Ao tentar associar a produção e as exportações com tais áreas, o estudo passou a considerar premissas que não cabem na realidade da pecuária brasileira. As fazendas não são homogêneas, assim como há uma grande diferenciação entre os níveis de fiscalização dos abates, conforme discorrido no texto.

A terceira crítica é assumir que um tema ainda em discussão seja uma exigência legal a ser imposta aos produtores. A questão dos fornecedores indiretos está longe de ser definida. Não há uma solução que possibilite rastreá-los. Nem mesmo o uso das GTAs será eficaz nesse ponto, visto que os lotes de animais de diferentes origens serão misturados nas diversas propriedades que os negociam. Insistir nesse ponto é garantir a aceleração da exclusão dos pequenos produtores, com consequências imprevisíveis no aumento da informalidade do mercado.

A menos que haja uma rastreabilidade individual, é impossível associar o indireto de nível 2 com o abate para exportação, tal qual adotado no estudo. Trata-se de uma premissa, uma tese, e não o resultado de produção científica. E o estudo considerou até o nível 10, superestimando significativamente o potencial de contaminação do abate e, mais ainda, das exportações.

Temos insistido que os estudos relacionados à pecuária envolvam a participação de especialistas na área. Caso contrário, é desperdício de tempo e de conhecimento acumulado em áreas da ciência com potencial enorme na criação de ferramentas que possam melhorar as cadeias produtivas. É o caso das modelagens, da produção de softwares e das análises de imagens por satélite.  De nada adianta aplicar tais conhecimentos sem considerar conceitos básicos também gerados pela ciência de décadas atrás.

Espero que este artigo não gere as mesmas reações que outros geraram anteriormente. Recentemente, um pesquisador falou que só aceitaria críticas em revistas científicas. Sua fala afronta o próprio conceito de ciência. O que está se discutindo aqui são pontos que não foram considerados na pesquisa. Não é preciso realizar um estudo científico para dizer que alguns animais produzem mais carne que outros. Ou que o abate pode ser direcionado a diferentes formas de fiscalização. Também não é preciso publicar um texto na Science para concluir que lotes de animais são misturados nas fazendas que os compram.

Revendo os excelentes dados gerados pelo artigo científico, mas considerando as ressalvas descritas ao longo do texto, é possível relacionar a responsabilidade do agronegócio a pouco menos de 1% da carne exportada aos europeus com alguma contaminação potencial por desmatamento.  O restante é responsabilidade do Estado e não é algo novo.

Se o estudo fosse refeito, identificando animais individualmente com os frigoríficos exportadores, não é de se duvidar que as exportações brasileiras estejam integralmente dentro do compliance.

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo e diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária

Fonte da Notícia
Athenagro

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