Carne: há um longo caminho entre o pasto e o prato

Somando todas as etapas envolvidas, a geração de tributos com todo o movimento da pecuária nacional passou de R$190 bilhões em 2023

Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária

Não é fácil produzir carne bovina. Antes mesmo da concepção das fêmeas, há um longo período de planejamento que envolve o preparo da futura mãe e do sistema de produção. Cada vez mais no Brasil, os criadores lançam mão de protocolos de inseminação artificial em tempo fixo, usando insumos reprodutivos e sêmens produzidos nas centrais de melhoramento genético. Apesar do crescimento, a maior parte da reprodução ocorre por meio de touros produzidos em fazendas melhoradoras, especializadas em determinadas raças. Infelizmente ainda existem muitas concepções de baixa tecnologia, com o chamado touro de boiada, mas é assunto que não será tratado aqui.

A gestação leva cerca de 9,5 meses. Depois do nascimento, machos e fêmeas levarão outros 6 a 8 meses para chegar ao ponto de desmama, quando deixam de receber o leite materno. Até esse período, a vaca mãe não parou, pois todo o preparo teve que ser reorganizado para entrar em concepção novamente e preparar a próxima cria.

Para que tudo ocorra dentro do cronograma, os animais devem estar bem nutridos e saudáveis. Não existe eficiência produtiva com animais maltratados.

Depois da desmama, inicia-se a fase de recria que, em teoria, vai dos 190 kg até próximo dos 400 kg de peso vivo, considerando os machos. As fêmeas iniciam a recria com 20 kg a menos e chegam ao final com cerca de 80 kg a menos. Não é uma regra, visto que há muita diferença entre os sistemas de produção.

A última fase é a engorda. Machos, na média nacional, chegam ao peso de abate com cerca de 300 kg de carcaça, equivalente a 550 kg de peso vivo. Fêmeas terminam, na média entre vacas e novilhas, com 215 kg de carcaça ou 420 kg de peso vivo.

Carcaça é a carne com osso, principal produto do abate usado como referência na remuneração dos produtores. Do abate ainda saem o couro, o sebo e a soma de vísceras que compõem o corpo do bovino.

O tempo da desmama até o final da engorda também varia de acordo com o sistema de produção. Estima-se que, na média, a fase de recria e engorda leve entre 24 e 26 meses, enquanto há sistemas de produção que completam tudo em 12 meses ou até menos.  

Somando gestação, desmama, recria e engorda, leva-se, em média, 40 a 42 meses para levar um bovino macho ao ponto de abate. Os sistemas mais otimizados reduzirão esse tempo para 24 meses.

Em todas as fases, a pecuária demanda recursos que envolvem serviços e produtos para cada uma das dimensões tecnológicas da produção: insumos para pastagens e forragens, suplementos mineralizados, componentes para rações, medicamentos, produtos para reprodução, insumos para mecanização, energia elétrica, manutenção da infraestrutura etc.

Quanto mais sofisticado for o sistema de produção – o que é extremamente desejável de qualquer ponto de vista – maior será a dependência de insumos e serviços qualificados para a produção.

E não para por aí. O boi, que sai vivo das fazendas, chegará aos frigoríficos onde se inicia o processo de desmonte. Essa etapa movimentará uma nova leva de serviços, insumos, energia, combustíveis etc.

Desmontar um bovino não é tarefa fácil, dada a quantidade de produtos gerada a partir de cada animal. A indústria precisa ser extremamente eficiente para administrar estoques e preços de venda para dar vazão a cada um dos produtos.

Hoje, a maior parte das carnes já saem desossadas dos frigoríficos, sendo a desossa feita na própria unidade ou em outra planta. Uma menor parcela da carne produzida ainda é enviada em carcaças (carne com osso) aos pontos de varejo – os açougues – dentro ou fora de supermercados.

Depois dos frigoríficos, ainda há o trabalho nos pontos de venda. Os supermercados envidam serviços e recursos para posicionar e apresentar os cortes que chegam prontos para o consumidor, embalados nos frigoríficos.

E há também funcionários que fracionam as peças maiores de acordo com a preferência dos consumidores, em porções menores ou no preparo de carne moída. Até mesmo a carne que está lá para ser manipulada, nos açougues dos supermercados, foi previamente desossada para entrega em caixas ou em embalagens maiores, pouco práticas para serem manipuladas em casa.

Nos açougues independentes, a dinâmica é a mesma, com maior proporção de carcaça entrando nas unidades.

Além das carnes compradas para o preparo nas residências, há também a carne vendida em restaurantes, preparada de acordo com a especialidade e proposta de cada um dos estabelecimentos do país.

Aí sim, em ambos os casos, depois de todo esse processo, a carne chega ao prato.

Estimativa da Athenagro Consultoria, realizada a pedido da Abiec/ Brazilian Beef, concluiu que esse processo, incluindo também o que é exportado, tenha movimentado R$895 bilhões em 2023. Na prática, o movimento é ainda maior, visto que o critério não calcula o sobrepreço e os serviços em restaurantes.

O mesmo estudo também estima que esse movimento, em 2023, tenha gerado cerca de R$145 bilhões em impostos, estimativa extremamente conservadora, já que representa cerca de 16% do PIB (Produto Interno Bruto) da pecuária de corte, segundo a Athenagro.

Essa porcentagem é metade da carga tributária média da economia brasileira.  Somando todas as etapas envolvidas, não é de se duvidar que a geração de tributos pelo movimento do setor tenha passado de R$190 bilhões em 2023.

A importância social da pecuária também é relevante. Nas fazendas e nas indústrias de abate, somando funcionários contratados e produtores, o setor garantiu cerca de 5,5 milhões de postos de trabalho.  As unidades de subsistências em pequenas propriedades devem ter empregado pouco mais de 1,1 milhão de pessoas. Estima-se ainda que 1,9 milhão de empregos sejam mantidos com base no efeito renda a partir dos salários e pró-labores injetados na produção pecuária e na indústria frigorífica.

Nos preços atuais, e na média Brasil, a carne de um bovino macho sai das fazendas valendo cerca de R$14,00/kg, incluindo osso. Depois do processo de desmonte, nos frigoríficos, a carne passa a valer R$14,50/kg, na carcaça, ou R$20,00/kg, desossada e embalada. E, finalmente, chega ao consumidor a R$34,80/kg na média ponderada de todos os cortes em açougues e supermercados. Nos restaurantes, o valor será acrescido de outros custos e margens de lucro.  

A pecuária tem evoluído constantemente, passando por diversas fases. De atividade praticamente extrativista até o início dos anos 1990, passou pelo início do processo de incorporação de tecnologia, pelo impacto desestimulante do ajuste dos estoques excessivos de animais erados (envelhecidos), oriundos de sistemas de baixíssimo aporte tecnológico, até chegar ao ponto que está hoje, incorporando tecnologia rapidamente.

E, junto com esse processo, as margens estão se reduzindo ao longo das décadas.

Em 2024, a margem de lucro líquida por unidade produzida na pecuária de corte está por volta de 13% contra os 47% do início dos anos 1970. Para um empresário da área urbana, margens de lucro acima dos 10% parecem muito, mas é preciso considerar o rendimento médio em cada hectare e o tempo de produção da pecuária. Quanto maior for o nível tecnológico, menor tende a ser a margem líquida por unidade produzida. O ganho, nesse caso, virá da escala por área.

Atualmente, em valores corrigidos pelo IGP-DI (Índice Geral de Preços – Disponibilidade Interna, da Fundação Getúlio Vargas), os preços recebidos pelo boi gordo são 54% inferiores aos preços praticados nos anos 1970.  A perda de renda dos frigoríficos é praticamente a mesma dos produtores. No entanto, assim como os pecuaristas, os frigoríficos também perderam margens incorporando alguns custos como modernização das plantas e a desossa nas unidades.

Por outro lado, os preços aos consumidores recuaram 38% na análise do mesmo período e sob os mesmos critérios. E, nesse caso, os pontos de varejo reduziram custos, pois a maior parte da desossa foi assumida pelos frigoríficos.

Diante do conhecimento dos fatos, chega a ser cômico ler análises apontando que a pecuária é subsidiada e que, mesmo assim, os preços da carne nunca abaixaram para o consumidor. São duas inverdades.

O preço da carne abaixou nos últimos 50 anos e acabou diminuindo muito mais aos produtores e frigoríficos. As margens de produtores e frigoríficos caíram inexoravelmente, o que pode ser comprovado por qualquer estudo sério que avalie o comportamento ao longo dos anos.

E o total de subsídios atribuídos ao setor foi extraído de um estudo que considerou dois recursos que não deveriam ser computados: a própria desoneração da cesta básica e o Pronaf. De acordo com o estudo, trata-se dos recursos mais expressivos computados como subsídios aos pecuaristas.

A desoneração da cesta básica atende a população mais necessitada do país. Em termos de benefícios à pecuária, essa desoneração representa firmeza na demanda. Os recursos serão distribuídos proporcionalmente em toda a cadeia produtiva. O produtor fica com a menor parte. Nos últimos anos, para cada R$1 pago por animal abatido, outros R$5,00 a R$6,00 circularam em outra etapa da cadeia produtiva, dependendo do ano que se analisa.

O Pronaf, sim, chega aos produtores, mas àqueles que estão sendo excluídos da atividade. Um dos números mais preocupantes identificados pelo Censo de 2017 (IBGE) está relacionado aos pequenos produtores, alvo do programa. Esse público soma 76% do total dos estabelecimentos pecuários do Brasil e movimentou apenas 16% do total das vendas. Portanto, o peso deste benefício na produção de carne é ínfimo, embora seja relevante às famílias necessitadas.

O único subsídio real, acessível aos produtores que respondem pelo dinamismo da pecuária, é a redução na taxa de juros disponibilizada nos planos safra. E mesmo assim trata-se de um recurso que deverá ser devolvido com juros.

Em nome de preconceitos, ou talvez em busca de holofotes e recursos, o ímpeto em argumentar contra qualquer fato que favoreça a pecuária é tão grande, que algumas pessoas acabam por não analisar a fundo o absurdo que estão defendendo. Com isso, abraçam o indefensável.

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