O que está sendo apresentado como uma marca referente apenas ao descarte de matrizes representa, de fato, um recorde absoluto da pecuária brasileira. Nunca foram abatidos tantos animais e nunca foi produzida tanta carne como o registrado em 2024.
Por Maurício Palma Nogueira, engenheiro agrônomo, diretor da Athenagro e coordenador do Rally da Pecuária.
Com o aumento dos preços da carne bovina em destaque na imprensa, muitas análises incompletas têm sido publicadas, contribuindo com a difusão de desinformações em relação à produção de carne. Há, inclusive, o retorno de sugestões cujos resultados seriam desastrosos, como é o caso de se criar medidas para limitar as exportações do setor.
Análises mais embasadas mencionam o ciclo pecuário de preços, um dos comportamentos mais estudados sobre a pecuária brasileira. No entanto, a explicação é insuficiente para analisar o momento atual da produção de carne. É preciso ir mais a fundo.
Assim como as demais culturas agrícolas, a pecuária entrou em um processo de modernização a partir de meados dos anos 1990, com a consolidação do Plano Real. Desde então, a produtividade avançou cerca de 200%, saltando da faixa de 23,4 kg de carcaça (carne com osso) para os atuais 70 kg de carcaça por hectare em produção. Mesmo com o aumento na produtividade, a média atual ainda está longe do ideal. A campo, a produtividade do público que responde a pesquisa do Rally da Pecuária é cerca de 3 vezes maior do que a média nacional.
O avanço tecnológico na pecuária é mais lento pela própria natureza da atividade, de ciclo longo. Atualmente, entre a concepção de uma vaca até o abate do animal que irá nascer, são necessários 42 meses, em média. Há cerca de 30 anos, o mesmo processo chegava a ser feito entre 60 e 65 meses. Hoje, há sistemas de produção que chegam a completar todo o ciclo em menos de 24 meses.
Mencionar o tempo para terminação dos animais vai além da mera curiosidade: é essencial para entender as dificuldades do processo de tecnificação da pecuária. À medida que os produtores melhoraram seus sistemas de produção, a oferta de animais aumentou proporcionalmente mais do que deveria, se considerado apenas o aporte tecnológico. Esse aumento desproporcional é explicado pela gradual liquidação de animais mais velhos do rebanho. Por muito tempo, o produto gerado por sistemas otimizados, cujos modelos demandam investimentos financeiros, competia com a oferta de animais originados pela tradicional pecuária de baixíssimo aporte tecnológico.
Essa sobreoferta impactava os preços de mercado, impedindo que uma quantidade maior de pecuaristas aderisse aos sistemas mais produtivos. Em qualquer atividade, o investimento só é efetivado diante da perspectiva de lucro lá na frente. O próprio processo de melhoria da pecuária brasileira acabou por gerar variáveis que, no início, contribuíram para trazer incertezas e atraso no aumento da produtividade da pecuária. Ainda assim, apesar de lento, o processo tem sido inexorável.
A redução da idade média do rebanho implica na queda do peso médio dos animais nas propriedades. Isso ocorre justamente pela redução da quantidade das categorias mais “eradas” (velhas).
Através da estratificação do rebanho por categorias, é possível estimar que o peso médio dos amimais em meados dos anos 1990 estava por volta dos 370 a 380 kg de peso vivo por cabeça. Atualmente, o peso médio dos animais do rebanho está por volta de 285 kg de peso vivo por animal.
Comparando a produção de carne anual com o peso em estoque, conclui-se que 2024 foi o ano de maior desfrute da história, com a produção total equivalendo a 40% do peso estocado. Em meados dos anos 1990, o desfrute era em torno de 18%.
É provável que a pecuária brasileira tenha registrado o último grande movimento de liquidação de estoques de animais mais velhos entre os anos de 2013 e 2014, aumentando a intensidade do movimento de baixa no ciclo de preços pecuários, período em que há maior descarte de fêmeas que deveriam ser dedicadas à reprodução.
Por volta de 2015 iniciou-se o período de estímulo tecnológico, de acordo com a classificação adotada pela Athenagro. Em outras palavras, a quantidade de animais velhos do rebanho não traria mais tanto impacto negativo aos sistemas mais produtivos, o que estimularia os produtores a acelerarem a adoção de práticas mais intensivas.
Nos anos seguintes, até 2019, os produtores foram pavimentando as condições para a nova mudança que viria com o aumento da demanda do mercado internacional, especialmente por parte dos chineses. Entre 2018 e 2022, as exportações de carne bovina aumentaram 37,5%. A produção de carne no mercado formal, no entanto, aumentou apenas 0,3%. Com isso, os preços aos consumidores chegaram a registrar alta acumulada de 85% entre a média de 2018 e o mês de agosto de 2022. Foi considerada a média ponderada entre os cortes na carcaça de acordo com os preços acompanhados pelo Instituto de Economia Agrícola, do estado de São Paulo.
Nesse mesmo período, entre 2018 e 2022, o número de bezerros gerados pela mesma quantidade de fêmeas no rebanho aumentou dez pontos percentuais, consequência do estímulo que os produtores de bezerros desmamados viveram naquele momento.
Como o ciclo de produção é longo, os resultados demoraram a aparecer. Em setembro de 2023, os preços da carne recuaram em torno de 16% no acumulado de 12 meses, permanecendo nesses patamares por mais 12 meses, até agosto de 2024, quando voltaram a subir para o consumidor. Desde então, até janeiro de 2025, os preços subiram 26%.
No entanto, os números não mostram as enormes mudanças por trás desse movimento. Em 2024, o Brasil registrou recordes nas exportações, embarcando o equivalente a 32% do que foi produzido no país. Diferente do que havia ocorrido entre 2018 e 2022, com o volume praticamente estável, em 2024 a produção formal aumentou 17,6% em relação ao ano anterior. Em carcaças foram 1,57 milhão de toneladas produzidas a mais para um aumento de 750 mil toneladas exportadas.
Mesmo que 2023 e o primeiro semestre de 2024 tenham sido característicos de ciclo de baixa, quando há o natural descarte de matrizes, é preciso levar em consideração alguns indicadores. O alardeado recorde no abate de fêmeas é acompanhado também do recorde no abate de machos.
Se comparar, em valores absolutos, o total de machos abatidos em 2024 no período de janeiro a setembro, é 2,23 milhões de cabeças superior do que o maior número registrado para o mesmo período até então. Na comparação das fêmeas, o abate do período é 1,89 milhão de cabeças acima do que o recorde anterior para o mesmo período. Os maiores abates haviam sido registrados em 2013 e 2014, respectivamente, para fêmeas e machos. A comparação de todos os anos foi feita até setembro, pois os dados de outubro a dezembro de 2024 ainda não estão disponíveis.
O que está sendo apresentado como uma marca referente apenas ao descarte de matrizes representa, de fato, um recorde absoluto da pecuária brasileira. Nunca foram abatidos tantos animais e nunca foi produzida tanta carne como o registrado em 2024.
E mesmo na análise das fêmeas, é preciso considerar que 40% do aumento do abate vem de novilhas, animais jovens que nunca entraram em reprodução. Essa categoria sim, registrou recorde ao totalizar 13,8% do total de animais abatidos de janeiro a setembro de 2024. De 1997 até 2024, a participação de novilhas no abate foi de 7,6%, em média.
Importante lembrar que as novilhas não abatidas, que permanecem no rebanho, levarão menos tempo para chegar ao ponto de substituir as vacas em reprodução.
Ao que tudo indica, a pecuária está pronta para responder cada vez mais rápido a estímulos de demanda. Qualquer interferência nesse processo pode causar o efeito contrário, restringindo a oferta de carne ao consumidor e, consequentemente, aumentando os preços.
Para reforçar, vale a pena analisar o caso dos argentinos.
Com a taxação das exportações de alguns produtos agropecuários, pela política denominada de retenciones, os argentinos colheram o inverso do que esperavam. Implementado entre 2006 e 2008, o objetivo era conter a produção no mercado interno, aliviando a inflação.
No entanto, o resultado foi o desmonte do dinamismo da pecuária argentina. O consumo per capita de carne bovina, que era de 63 kg/pessoa/ano, antes da decisão, recuou para os atuais 45 kg per capita.
Antes que ideias mirabolantes sejam consideradas, é essencial pensar em longo prazo.